10.06.22
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UM TRISTE FADO – COROA DE SONETOS - 1
- Numa velha tasquinha de Lisboa
Corações magoados choram saudade
Um fadista rebelde de voz boa
Canta um fado de muita ansiedade - É uma tristeza dorida
Numa história, simples e singela
Cantada na casa castiça e colorida
Por uma garganta rouca e bela - Aconteceu ali ao lado, na viela
Um crime que está a ser muito falado
Mataram o guitarrista João Catela
O povo não se conforma
Anda de coração chorado
E acham a justiça um pró-forma - 2
Acham a justiça um pró-forma
Querem-na fazer com suas mãos
Não podem aguardar p’la norma
Do tribunal julgar o malandrão - Não sabem bem o que se passou
- Fala-se de um marido enganado
Que uma pistola bem manejou
Caindo na viela, o João baleado - No bairro, aquele crime é bizarro
A população vive em sobressalto
O fadista vai fumando seu cigarro - Ouvindo o povo comentar
Que próximo já houve um assalto
E o medo já começou a chegar - 3
E o medo já começou a chegar
Pensa o mui nobre fadista
A tasca depressa se vai esvaziar
Terminando a noite p’ro artista
Todos regressam à sua casinha
Trocando segredinhos do acontecido
Fala-se que foi por causa da Aninha
Que Catela, ali perto tenha morrido - Diziam que boa moça era Aninha!
Casada com o Zé Marinheiro
Mas com o João, já a viu uma vizinha - Não imaginando o crime cometido
- Até que o defunto não era “arruaceiro”
Era bom homem, trabalhador e amigo - 4
Era bom homem, trabalhador e amigo
Mas foi o ciúme a causa daquela desgraça
Amou quem não devia, estava perdido
P’ro coração do Zé, era uma ameaça - O povo agora não fala de mais nada
Senão da Ana, do Zé e do João
É uma desgraça acontecida p’la calada
Sofrendo a população pela traição - Lá no bairro são todos muito amigos
Até Marcham nos Stos. Populares
Agora sentem-se tristes e perdidos - E por causa do crime que é o primeiro
- O povo regressa cedo aos lares
- Com medo do que fez Zé Marinheiro
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Com medo do que fez Zé marinheiro
Perdeu a cabeça num acto tresloucado
Arrependido está o amigo e companheiro
Era tão bom marujo, e cometeu vil pecado - O Zé, por mares muito navegava
Deixando no cais Aninha triste e só
Ela, que nas partidas muito chorava
Cometeu a traição, sem pena nem dó - Por ele, mais lágrimas não vai deitar
Zé, vai p’ra cela suja sem saída
Por alguns anos o vão encarcerar - Triste, este destino que aconteceu
Aninha ficará na mágoa bem sofrida
E o pobre do João por amor morreu - 6
E o pobre do João por amor morreu
Um guitarrista de poemas talhados
O povo está triste p’lo que aconteceu
Tocava tão bem na casa de fados - Era um homem bonito e todo gingão
Diz a vizinhança, que por ele suspirava
Zé, era traído sem dor no coração
Por Aninha, que com João se deitava - Este artista de tão grave pecado
Nas guitarras já pouco tocará
Mas não fica órfão do seu amigo fado - Irá continuar nesta cidade castiça
Onde a paz ao bairro voltará
Quando p’lo João se fizer justiça - 7
Quando p’lo João se fizer justiça
Já o Zé cumpre pena no degredo
Aninha, terá outro homem que a cobiça
Não é mulher de andar só, e com medo - Das ruas da amargura foi resgatada
P’lo seu marido Zé Marinheiro
Era prostituta da rua mal frequentada
Por mulheres que amavam por dinheiro - Aninha, na vida tem um mau passado
Seu homem bom, da lá, a tirou
E como gratidão, com o João atraiçoou - É um pecado que não vai ser perdoado
P’los vizinhos, que dele muito fala
Causando a dor que o povo não cala - 8
Causando a dor que o povo não cala
E que os poetas está a inspirar
Dará poesia que se cantará numa sala
Em fados que fará o coração sangrar - Guitarras chorarão baixinho
Poemas de sangue e dor
P’ra um fadista que cantará certinho
O triste destino traído por amor - Ela voltou p’ra tristeza traçada
E na rua procura outra oportunidade
Que decerto não lhe será ofertada - Por outro homem que a poderia amar
Aninha, sente-se só nesta cidade
E no rosto, não há lágrimas a deslizar - 9
E no rosto, não há lágrimas a deslizar
Os remorsos a estão a consumir
No bairro conhecem seu pecar
E de lá, querem-na ver partir - Aninha, vive nas ruas da amargura
Suplica ao vento p’ra levar seu inverno
O tempo que lhe perdoe a grande loucura
Senão, jamais esquecerá seu pecado eterno - Agora, nas acordadas madrugadas
Assaltam-lhe pensamentos do Diabo
Cobrando-lhe suas dores desbragadas - P’ra seu mundo de inferno permanente
Já escrito em poesia para um fado
Cantado p’lo fadista, pausadamente - 10
Cantado p’lo fadista, pausadamente
No silêncio das noites de bom tino
Este drama triste e pungente
Apenas seguiu por mau destino - Nos três amigos, suas vidas se alterou
Um morreu, outro já está preso
E outra, sua vida p’ra trás voltou
Recebendo a paga de total desprezo - Por toda população local
Que jamais esquece o sucedido
Numa atitude correcta e natural - Condenando tal acto vivido
Onde o futuro do amigo foi perdido
Porque o João, por eles era querido - 11
Porque o João, por eles era querido
Sendo na guitarra um virtuoso
Acompanhava fadistas, agradecido
De modo sempre afectuoso - Até que o ciúme lhe apareceu
Dando lhe um fim triste e brutal
Como uma vertigem de breu
Surge a visão terrível e infernal - Agora gemem as guitarras
Em outras mãos generosas
Dedilhando poesia sem amarras - Desta tristeza, de dor, e morte
Chorada por pessoas carinhosas
Com rancor desta má sorte - 12
Com rancor desta má sorte
Acontecida na viela ao lado
Onde a dor ali bateu forte
Nos corações dum povo desolado - Trovas se começam a escrever
P’los poetas que as estão aprimorar
Em rimas exuberantes de saber
Acontecendo poesia de acicatar - P’ra tantos que se vão deslumbrar
Pela escrita que traz tanto sofrer
Muitos, dela se vão sempre lembrar - Que o ciúme só traz desgraça
A vidas que se podem perder
Neste mundo fértil de devassa - 13
Neste mundo fértil de devassa
Onde de boca, em boca voa a miséria
De acontecimentos que ultrapassa
O bom senso, de forma vil e pouco séria - Hoje já se cantam poemas de dor
Nas mais afamadas tabernas finas
Em vozes generosas de ardor
Cantados em fados de tristes sinas - Como o poema dos três amigos
Cujo o crime os maltratou
Hoje, do futuro se encontram perdidos - A Ana, que era tratada por Aninha
À rua da má vida ela voltou
Perdendo aí a sua boa estrelinha - 14
Perdendo aí, a sua boa estrelinha
Como castigo da muita má sorte
Cumprindo esta pena p’la tardinha
Num ritual que a vai levar à morte - E o fadista rebelde, de voz rouca
Canta p’ra clientes sensibilizados
O ciúme que deixou a vida louca
A três amigos outrora respeitados - Apenas agora resta a saudade
Naquele bairro de bom viver
De gentes que ama a sua cidade - Como um poema que bem soa
Na voz do fadista de bem o dizer
Na tasquinha dum bairro de Lisboa - De: Fernando Ramos